domingo, 22 de abril de 2012

E para cantar a Literatura Marginal...


Na primeira vez em que eu ouvi a música #Poucas Palavras, do Grupo Inquérito, faixa do álbum "Mudança", fiquei agoniada pra escrever algo sobre sua construção de um fundo musical muito contundente, belo e fidedigno para a Literatura Marginal. Trata-se de uma música que me impulsiona consideravelmente, me arrepiou com sua ode a essa faceta da expressão artística que me faz acreditar em melhores faces para o mundo e isso me estimula a seguir. Tenho muito orgulho de estudar a literatura que estudo, de admirar xs escritorxs que admiro e de saber que essa produção periférica fissura muitos dogmas intocáveis. Isso é possível sim, acreditem, xs pessimistas que me desculpem, mas botar fé na MUDANÇA é fundamental. 
                Aqui no tardia eu já falei um pouco da obra #PoucasPalavras, do Renan Inquérito, um livro que bombardeia as certezas do cânone literário de uma forma desafiadora! “Se a história é nossa deixa que #nóisescreve” (frase enunciada na música também intitulada #PoucasPalavras) essa é a marcação de uma autonomia que nos foi surrupiada sistematicamente ao longo da nossa história, a narrativa de quem sempre esteve à margem. Já disse Foucault que o discurso é uma luta pelo poder, nessa perspectiva a instrumentalização para que pudéssemos alcançá-lo seria a nós impedida a todo custo. O que arranca minha admiração e me motiva é o discurso fronteiriço forjado nos arredores desse mundo de impedimentos, a Literatura Marginal é um exemplo cativo desse empreendimento.
                O livro organizado pelo escritor Ferréz, Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, tem como texto de abertura “Terrorismo literário” que explicita o intuito dessa arte que ecoa discursos periféricos no reservado espaço literário: “Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (2005:9). Estaríamos diante de uma procura incessante pela legitimação de sua escrita? Não mesmo, esse não é o objetivo de quem escreve o que quer e por sua própria conta, como disse o líder sul africano Steve Biko. Protagonizar, falar de si para seus comuns, falar de si para xs outrxs, produzir os moldes e não apenas usar aquele pensado para corpos alheios, não ser mediadx, cerceadx ou estigmatizadx, ser arte preocupada com conteúdo SIM e criando a cada dia uma FORMA que precisa de uma nova forma para ser compreendida são algumas das muitas  características da produção literária marginal.
                O grupo Inquérito está em consonância com a responsabilidade que Biko nos deixou como herança de luta e vida na obra “Escrevo o que quero”. A música #PoucasPalavras se inicia com a provocação: “Por várias vezes já tentei falar / Têm poucos para ouvir / Muitos pra escutar / Os desanimados / O rap tá embaçado / Nóis ‘somo’ movimento / Mas estamos parado / Fazer o que né? / Os dois lados da moeda / Uns tão envolvidos, outros tão de para-quedas / É favelado querendo ser boy / boy querendo ser favela / Mas no final, quem corre mesmo por ela?!” A problemática das motivações, anseios e construções que o eu-lírico almeja para o rap é a apresentação dessa canção, a polêmica estabelecida logo no início é uma manifestação de descontentamento com alguns descasos e apropriações feitas dentro de um movimento fundado na contestação dos problemas de quem pouco tem. O grupo Inquérito provoca e frisa a importância de se re(fazer) e se re(criar) através de expressões singulares dentro de uma linguagem que carrega em si identidade e endereço. Ferréz também marca essa ideia no “Terrorismo literário” na continuidade da frase acima citada: “A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo” (2205: 9). 
                Após dar lançar a discussão que promovem em sua música, a letra segue e enuncia: "Vou dar um salve / pra quem não sabe / O rap tem base / Bagulho não é fase / Hoje a favela é moda nas tela / Cidade de Deus, Tropa de Elite,Novela / Nois grava disco,lança livro,faiz até sarau / Nois lava alma e depois põe pra secar no varal / Toca nos carros, toca nas rádios / Enche a auto-estima / Tipo torcida no estádio”. Há um movimento em franca expansão que protagoniza e reivindica a fala de si, promove seus próprios eventos e não pede “permissão” para construir sua expressão. Mais do que fazer uma ode vazia ao modismo intitulado “estética da violência” que invadiu o mercado editorial brasileiro no final dos anos 90, essa música marca temporalmente um crescimento gritante vivido pelas periferias atualmente que veio acompanhado da autonomia, do protagonismo e reivindicação | reinvenção de criação. Nesse mesmo sentido, escreveu Ferréz no texto aqui já citado: “Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, por que teríamos espaço para um movimento literário? Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos” (2005: 10).
                O terreno da literatura contemporânea é muito escorregadio, a todo o momento nos deparamos com as armadilhas da valoração arquitetonicamente construídas pelos guardiões do portão que Ferréz anunciou arrombar. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em “As regras da arte”, aborda as relações e a composição do campo literário para perceber sua influência direta ao valor dado às obras. É inquestionável o fato de que o trabalho de editorxs, críticxs, professorxs, pesquisadorxs etc, atua na “eleição” das obras mais “relevantes”, “importantes” e “clássicos” entre outras alcunhas. Nem é preciso dizer que a produção periférica que hoje arromba portões e destrói muros, nem sempre é referenciada, aceita e estudada como literatura por grande parte dos agentes do campo literário.
                Mas para esse proposital esquecimento e silenciamento respondemos estratégica e frontalmente: “a arte que liberta não pode vir da mesma mão que escraviza” essa frase do poeta Sérgio Vaz, presente no texto “Manifesto da Antropofagia Periférica” está para além de um diálogo com a música do Inquérito, as duas selam o comprometimento com uma arte em que nós tenhamos nossas subjetividades levadas a sério, sem caricatos ou histórias únicas, hora de colocarmos tudo em nossos livros, fazendo eco atitude de uma das precursoras dessa expressividade, Carolina de Jesus. Fecho meu texto com a frase dos meninos do Inquérito: "vida longa à Literatura Marginal"!

Link para ouvir #PoucasPalavras, Grupo Inquérito: http://www.youtube.com/watch?v=m7jjltFXAaI


domingo, 15 de abril de 2012

Ferréz, Sérgio Vaz e Gog na I Bienal Brasil do Livro e da Leitura

Quem esteve hoje pela manhã na I Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada em Brasília, teve a oportunidade de discutir os desdobramentos da Literatura Marginal com dois dos seus mais destacados representantes, os escritores Ferréz e Sérgio Vaz.  O cantor e poeta Gog mediou a mesa que tinha como tema a “Expressão literária e estética da periferia”, o debate se deu em uma quente tenda do caríssimo evento que traz para a cidade expoentes da literatura mundial como Alice Walker e Wole Soyinka. 
As interfaces entre o rap e a Literatura Marginal são simbióticas, como bem frisou Sérgio Vaz em dado momento de sua fala. Então, não é de causar estranhamento o fato de que parte do público fiel ali presente fosse composto por pessoas que viraram a madrugada no show do grupo de rap Racionais MC’s, inclusive os palestrantes e o mediador da mesa. Nada como um dia após o outro dia de agito para leitorxs e agentes da Literatura Marginal (hehehe).
Bocejos e cansaços à parte, Gog apresentou os participantes ao público e iniciou as discussões da manhã falando acerca do compromisso que o Hip Hop tem de promover mudanças na postura e na formação dxs jovens (seu maior público) oriundxs dos espaços da escassez.  O cantor considera que a literatura é uma das frentes do movimento que articula muito bem tal “função”.
Ferréz fez uma contundente fala no que diz respeito ao compromisso formativo que ele abraçou como sendo um dos objetivos de seu fazer artístico. O escritor disse que sua missão ali era “convencer leitorxs a serem viciadxs em literatura”. Alguns podem julgar antiquado o “tom messiânico” dado a tal arte, mas convenhamos que é muito fácil estabelecer entendimentos como esse quando se vem do espaço do conforto. Quem sempre esteve nas melhores escolas, com acesso aos mais diversos livros desde a mais remota infância e que precisa de mais de duas mãos para contar o número de viagens que fez ao exterior acha “chic” lidar com a literatura se preocupando apenas sua FORMA em detrimento de seu CONTEÚDO. Essa relação é a raiz de todo o preconceito destinado à Literatura Marginal que não teria sentido algum longe de sua motivação fundamentada na construção de conteúdos que desdobrem algumas transformações, nem que isso seja apenas um sonho para leitorxs e escritorxs.
Partindo da motivação de ser agente modificador de seu lugar, mesmo que em escalas homeopáticas, Ferréz falou da sua atuação como palestrante e oficineiro em escolas públicas e presídios de São Paulo. O mesmo disse entender a literatura como algo vivo, essa percepção leva o escritor a disseminá-la nos espaços onde a vida se forma e também se transforma. O autor leva de Dostoievski, a Plínio Marcos e Fernando Pessoa, dentre muitos outrxs, para reviverem sua arte a partir do momento em que são lidos dentro dos espaços que são esquecidos pelo Estado.  Ferréz é um escritor, roteirista, cantor e empresário exemplo do compromisso verbalizado por Mano Brown, na noite anterior, em ocasião do show dos Racionais MC’s na cidade: “Maloqueiro, cuide da sua esquina” #FicaAdica.
Sérgio Vaz, o escritor mais sagaz também nos domínios do “espaço das revoluções com jujubas”, o twitter, começou sua fala lendo o  texto “Literatura nas ruas”, presente em seu livro “Literatura, pão e poesia” (2011), que aborda a experiência do mesmo com o sarau da Cooperifa, realizado há onze anos, em São Paulo. O poeta, em sua fala, contemplou os problemas e as vitórias enfrentados por quem encara a missão de propagar a Literatura Marginal. Para ele, a Literatura Marginal não salva vidas como fazem as ONG’s, mas forma cidadãos e cidadãs agentes de transformações cotidianas no mundo. Não poderia ter sido mais pertinente a intervenção do aluno da rede pública e poeta Fernando, que recitou seu poema para a plateia e nos atentou sobre a sistemática vitimização que o olhar outro emprega à periferia.  O eu-lírico do poema de Fernando nega todas as interpretações derrotistas dadas à favela e anuncia seu fortalecimento identitário no último verso: “apenas um guerreiro seguindo na missão”. Alguém ainda duvida da agência da arte marginal nas vidas marginalizadas?
A arte precisa se fazer compreensível e a Literatura Marginal (re)inventa a linguagem para dar conta desse objetivo. Sérgio Vaz frisou esse aspecto singular da expressão marginal explicando sua dinâmica de tomada do conhecimento e transformação do mesmo no já citado “Literatura, pão e poesia”, a “antropofagia periférica” assim se faz.
A plateia foi bastante ativa no debate, muitas perguntas foram feitas e houve uma rodada de autógrafos e sessão de fotos com Ferréz, Gog e Sérgio Vaz ao final da mesa. Impossível conseguir transpôr aqui no tardia tudo o que pude absorver desta manhã tão significativa. Vida longa à Literatura Marginal que promoveu um debate dinâmico, enriquecedor e ainda nos agraciou com declamações memoráveis dos, além de tudo, divertidíssimos Sérgio Vaz e Ferréz. Finalizo retomando a frase de Renan Inquérito citada por Vaz em sua contribuição: “Se a história é nossa, deixa que nóis escreve”.

*Fica minha crítica à disfuncional, quente e abafada estrutura montada com recursos que chegam a 9 milhões de reais do dinheiro público para essa bienal. Tanta grana no meio e em um dia de evento já me deparei com um  mal planejamento estrutural combinados com uma equipe de recursos humanos um tanto falha e uma insuportável  montagem de arena política de deputados e secretários de governo nos atos solenes, aff!
**Troféu joinha para duas pessoas sem noção da produção que chamaram o Sérgio Vaz de Sérgio Sá duas vezes!! =S
***Chamar o twitter carinhosamente de “espaço das revoluções com jujubas” é coisa da querida Ludimila Moreira Menezes! ;P
****Todas as fotos são da Laetícia Jensen Eble querida. ;)