quinta-feira, 5 de julho de 2012

Desde que o samba é samba


Na cadência bonita de um samba recriado pela ficção e enredado pela História, temos a composição da matéria de Desde que o samba é samba (2012), novo livro do Paulo Lins, uma obra pra ser ouvida e lida entre a poltrona e o youtube, interação blaster!

Paulo Lins que desde Cidade de Deus (1997) não havia mais publicado, retoma sua obra marcada pela etnografia, agora publicando pela Editora Planeta. Lançado no fim de maio, Desde que o samba é samba revive para sempre, nas páginas de um romance, os versos primeiros de um ritmo-poesia criado pelxs descendentes de ex-escravizadxs.

Entre personagens ficcionais e históricos, Lins recria o cenário de um Rio de Janeiro marcado pela política higienista que norteou aqueles anos de 1920. Naquele tempo, a liberdade para negros e negras era cerceada pela aplicação da “lei da vadiagem”, naquele tempo a dita “malandragem” de alguns guardava apenas a resistência de quem era obrigadx a estar na margem e ser capoeira para sobreviver.  

Ismael Silva é a personagem que sintetiza o tom efusivo, alegre, mas também recheado pela poética melancólica que preencheu os versos iniciais do nosso samba. Sua história é uma das que compuseram as muitas narrativas formadas no burburinho da zona central do Rio de Janeiro, o Estácio, o berço do samba. Paulo Lins convida x leitxr a ser um flanêur do início do século XX, não apenas para contemplar a cidade, mas para sentir o que os morros, os inacessos e os grandes encontros no centro representaram para a interação cultural das pessoas ali viventes.

Brancura (Sílvio Fernandes) é a personagem principal do romance, o escolhido por Lins para protagonizar parte da ficção que amalgama seu romance à História. O triângulo amoroso vivido por Brancura, pelo português Sodré e pela prostituta Valdirene prende x leitxr que é rapidamente capturado pelas traições e os sentimentos densos que unem essas personagens. A relação dos três é costurada no pano de fundo de um Rio de Janeiro cantado pela efervescência do samba.

É na tessitura desse triângulo de amores que a dívida de Lins com x leitxr se faz. Assim como ocorreu em alguns momentos de Cidade de Deus, há lacunas entre as narrativas ficcionais e o fundo histórico da obra que ora pesam, forçam situações e didatismos, ora se desprendem e deixam os fios do contar soltos. Outro incômodo no texto de Lins, para mim, é a mão naturalista que sobrecarrega a construção dele. Me desagrada profundamente preterir a agência da escolha para algumas personagens, o corpo ainda grita nas linhas de Paulo Lins e isso me soa atemporal e até irreal.
A solução, tenho certeza, ficará na mão de um Fernando Meirelles da vida. Desde que o samba é samba é uma obra que ficaria muito bem se transposta para as telas, é para ouvirmos “Me faz carinhos”, do Ismael Silva, embalando o atribulado amor de Valdirene e Brancura. Trata-se de uma narrativa cinematográfica, a cada página eu imaginava as ruas, a casa da Tia Almeida (a Tia Ciata!!), os instrumentos recém-criados, os terreiros de Candomblé, as casas de Umbanda nascidas juntas com o samba e suas escolas, enfim um mundo inteiro que o cinema teria grande prazer em recriar. (Ajuda ler o livro e assistir ao filme “Noel, o poeta da vila”, justamente por conta da ambientação das ruas e das entradas fonográficas).

Por mais que eu tenha apontado alguns ranços no enredo de Lins, recomendo esse livro fortemente para quem eu puder. Ler uma obra que faz nossa mente manipular cenas recriadas por uma memória musical vinda do quintal da nossa casa é muito precioso! Paulo Lins me ganhou com esse segundo romance, reconheço há muito a importância dele que abriu portas para que escritores como o Ferréz <3 despontassem no campo literário brasileiro, mas ainda não o tinha como um querido das letras. Agora isso acontece e aguardo ansiosa por mais obras, ah, e por mais desapego às cenas um tanto naturalistas!

Desde que o samba é samba retrata um momento divisor de águas para a subjetividade criativa de um povo explorado por séculos e que ali, em meados dos anos de 1920, começou a articular o movimento musical que o fortaleceu em luta e estima. Lins finaliza seu livro com esse tom: “Até o vento fazia a curva em causa própria, assim como as pessoas que sentiam aquela energia vinda da criação artística para superar a vida em que o povo negro da pós-escravidão colocou a cultura como arma para conquistar dignidade com duas batidas fortes no surdo feito deixa para o solista sair improvisando (...) Tiveram a ideia de fazer parte da sociedade em forma de canto, mas mesmo assim foram espancados pela polícia, sofreram desdém, foram presos, tiveram a dor do preconceito, mas saíram sambando em busca de uma avenida para fazer dela uma passarela com o reforço do tamborim, do reco-reco, da cuíca e do surdo” (LINS, 2012, p. 294).